Nesses dois meses de convívio, regados de intensa preocupação e angústia de todos os brasileiros em relação à pandemia do COVID 19, temos encontrado vários conflitos inerentes a uma situação de tanto estresse como tal.
Desde a gripe espanhola, não vivenciada pela maioria dos seres vivos atuais, a humanidade não era submetida a uma agressão como tal: implacável, rapidamente disseminada, com significativa taxa de mortalidade, morbidade e tempo tão prolongado de necessidade de recursos de alta complexidade.
Isso posto, deveríamos imaginar que a situação traria imediata união de todos nós, com premência pela atividade coesa, que privilegiasse o coletivo.
É fato que, a maneira como se iniciou e alastrou, tal pandemia nos pegou a todos de surpresa, deixando-nos estupefatos, demandando ações para as quais ainda não nos preparáramos, uma vez que seu causador, o coranavírus SARS-COV-2, foi só então descoberto, sua transmissão e fisiopatologia eram totalmente desconhecidas e a terapêutica adequada uma incógnita.
É plenamente compreensível e desejável que o médico, desde seu juramento de Hipócrates, imbuído do espírito de ação em benefício do doente e de propiciar o atendimento que permita maior chance de sucesso, nesse contexto de ausência de possibilidades terapêuticas definitivas, recorra a medidas inovadoras ou por analogia com doenças similares já conhecidas, desenvolvendo o seu melhor.
Aos poucos, vamos reconhecendo o novo patógeno, extremamente complexo e multifacetado, surgindo terapêuticas dirigidas a vários pontos da cadeia de sua fisiopatologia, principalmente no que diz respeito às consequências da sua ação, o que já traz melhora do seu entendimento e dos resultados.
Em relação ao vírus em si, existem, até o momento, várias tentativas terapêuticas dirigidas à eliminação do microrganismo e/ou bloqueio da sua atividade, tentativas essas bem vindas, que, porém, ainda carecem de dados científicos sólidos, que nos permitam deduções adequadamente embasadas.
No entanto, vejo-as propagadas por colegas aos quatro ventos, como se fossem inquestionáveis e como se os mesmos, com glamour, indicassem um perfume ou vestimenta da sua preferência, causando alarde e conflitos, intensificados pela mídia em geral.
Como membro do Comitê de Bioética do Hospital Alemão Oswaldo Cruz -HAOC há quase 13 anos, que prima pela mediação de conflitos, conhecendo a boa formação de muitos colegas que expões seus depoimentos conflitantes, alerto para discussão de princípios bioéticos fundamentais da prática médica:
1- Privilegiar a beneficência.
2- Evitar a maleficência, já que é tão perniciosa quanto a não execução da beneficência e, nesse caso, é mister considerar tanto os efeitos colaterais da terapia, como os possíveis efeitos nefastos econômicos, políticos e emocionais das informações disseminadas, sem evidência de real benefício.
3- Respeito à autonomia dos pacientes, dos profissionais, em relação a suas decisões preventivas ou terapêuticas, mas também dos colegas que atuam nas áreas de enfrentamento da Covid 19 e que, baseados em dados científicos, discordam da sua opinião.
4- Primar pela justiça e esta não será feita com informações conflituosas, mas com a busca de todos juntos pelo melhor tratamento para todos.
No entanto, como membro da Comissão de Ética desse mesmo hospital desde 2010, relembro princípios fundamentais do Código de Ética Médica, que julgo pertinentes para a ocasião:
Sobre os princípios fundamentais do exercício da Medicina.
Capítulo I- PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS.
I – A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza.
II – O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional.
IV – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão.
V – Compete ao médico aprimorar continuamente seus conhecimentos e usar o melhor do progresso
Sobre a responsabilidade do médico diante da publicidade médica
Capítulo XIII -PUBLICIDADE MÉDICA
É vedado ao médico:
Art. 111. Permitir que sua participação na divulgação de assuntos médicos, em qualquer meio de comunicação de massa, deixe de ter caráter exclusivamente de esclarecimento e educação da sociedade.
Art. 112. Divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico.
Art. 113. Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente.
Art. 114. Consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa.
Por fim, respondendo à pergunta título do texto: “Não há dúvida de que muitas declarações ocorridas durante a pandemia de COVID 19 têm sido um desserviço à população, mas, além disso, se enquadram como infrações éticas de acordo com o Código de Ética Médica de nosso país!”
Dra. Janice Caron Nazareth
Médica cardiologista, presidente do Comitê de Bioética do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.