O Peregrino e o Som da Pedra
(Da Coleção Saber Essencial — Contos do Peregrino da Luz – 02)
Diz-se que toda pedra guarda um som, e que todo som é memória daquilo que um dia foi silêncio. Na manhã em que o Peregrino deixou o vale dos rios unidos, a névoa ainda cobria a planície como um manto de esquecimento. Caminhava sereno, sem pressa, guiado apenas pela vibração do que havia aprendido. O Olho que vira na noite anterior ainda pulsava em sua lembrança, não como imagem, mas como presença interior. Cada passo parecia ressoar dentro da própria alma, e o ar, rarefeito, tornava o silêncio uma matéria palpável. À medida que avançava, o terreno se erguia e a montanha tomava forma diante dele: maciça, clara, imensa.
No meio da subida, uma pedra sobressaía como se esperasse há milênios por aquele encontro. Era lisa, levemente cintilante, e parecia respirar sob a luz do sol nascente. O Peregrino aproximou-se e pousou a mão sobre ela. Um som quase inaudível vibrou sob sua pele — não um som externo, mas interno, vindo das profundezas da rocha. Fechou os olhos. Nesse instante, o mundo ao redor pareceu recolher-se, e ele ouviu, no íntimo, um ritmo antigo, como o eco de um trabalho primordial. Não era a lembrança de homens batendo pedra contra pedra, mas de algo anterior, como se o próprio cosmos tivesse entoado uma canção ao dar forma à matéria.
O som que emanava da pedra falava de paciência e precisão. Falava de mãos que não destruíam, mas libertavam. Falava de artesãos invisíveis que compreendiam o segredo do intervalo — aquele breve silêncio entre dois golpes, onde se decide o destino da forma. E uma frase, simples e profunda, emergiu em sua mente: “Não é o golpe que molda o homem, mas o silêncio entre os golpes.”
O Peregrino sentou-se diante da pedra e deixou o som atravessar-lhe o ser. Entendeu então que toda criação é vibração, e que o universo inteiro se constrói sobre a harmonia entre o som e o silêncio. A força sem sabedoria destrói; a sabedoria sem ritmo se dispersa. Apenas o som justo, emanado de um coração em equilíbrio, pode sustentar a obra.
De dentro de seu manto, retirou o bastão que sempre o acompanhava. Tocou levemente a pedra e, de súbito, o som se expandiu como círculos de luz sobre a água. As montanhas responderam, uma após a outra, cada qual emitindo um tom distinto. O vale se encheu de uma sinfonia muda, perceptível apenas à alma desperta. Por um instante, o Peregrino compreendeu o que os antigos construtores chamavam de harmonia das esferas. A matéria, pensou, é apenas som coagulado.
O sol então ultrapassou o cume da montanha e derramou sua luz dourada sobre o cenário. A pedra brilhou intensamente e, em sua superfície, o Peregrino viu refletido o próprio rosto — não como espelho de carne, mas como reflexo do espírito que observa. Reconheceu-se parte da obra. O som cessou, mas a vibração permaneceu viva, como um coração oculto no seio da Terra.
Ergueu-se, apoiando-se no bastão, e traçou com a ponta no chão um círculo perfeito. No centro desenhou um ponto, símbolo da origem e do destino. Compreendeu, naquele instante, que o caminho do homem é o mesmo da pedra: lapidar-se até revelar a luz que o habita. Nenhuma ferramenta externa pode fazê-lo, pois o verdadeiro cinzel é o discernimento, e o verdadeiro som é o da consciência despertando em silêncio.
Enquanto descia a encosta, o vento trouxe até ele o eco suave de uma melodia antiga, talvez nascida no início dos tempos. O som parecia dizer: “O som desperta a forma, a forma sustenta a luz, e a luz revela o Peregrino.” Sorriu, porque entendeu que não caminhava sozinho. Caminhava ao lado de todos os que, em eras diferentes, aprenderam a ouvir o som da pedra e a esculpir o invisível dentro de si mesmos.
E assim, entre o som e o silêncio, o Peregrino seguiu, levando consigo o eco de uma verdade simples e eterna: que cada homem é uma pedra viva, e cada pedra, um verbo em gestação.